domingo, 23 de outubro de 2016

“Vocês são hippies?”


É curioso como algumas pessoas nos acham diferentes. É verdade que Tiago deixou crescer uma barba ruiva imensa. E que eu raspei a cabeça no início do ano por conta de uma luta inglória com piolhos, e agora as madeixas vêm crescendo sem controle ou harmonia.



Mas o que creio que chama a atenção das pessoas é estarmos sempre com as crianças, com a dedicação e importância que elas merecem. Ou, para quem nos conhece um pouco mais, as experiências que vimos nos propondo a viver, nosso estilo de vida.

Em nossa primeira viagem paramos para almoçar em um posto de gasolina num grande entroncamento de estradas. Voltávamos de Alto Paraíso de Goiás, já na altura de Minas Gerais. Estávamos assim, divididos entre atender o ritmo e curiosidade das crianças e a nossa ansiedade por terminar a viagem quando uma das funcionárias, que nos observava, me perguntou se éramos assim por causa de alguma religião.

Em Juiz de Fora, onde pernoitamos entre Terra Una e Aimorés, saímos a caminhar no feriado de dia das crianças por uma avenida principal do centro da cidade, em busca de uma agência bancária. Íamos no ritmo das crias, por isso nos dividimos. Quando me encontrei com Tiago ele respondia aos questionamentos de uma passante que, com cara de aprovação, me perguntou: “vocês são hippies? que legal!”. E eu: “não, por que?” Não lembro bem o que ela respondeu, mas saiu sorrindo e contente.

Em Aimorés, um dos estudantes residentes, que nos acompanhou na trilha pelo Instituto Terra, nos perguntou sobre permacultura. Não sabemos muito, na verdade é bem pouco nosso contato mas temos interesse crescente e vontade de fazer alguns cursos que já assuntamos. Foi só mencionar isso que ele se empolgou, pediu meus contatos, compartilhou nossa conversa com outros estudantes que também vieram conversar conosco.

Fico surpresa de ver como pequenas mudanças fora da caixinha, do sistema, mobilizam as pessoas. Elas nem sabem bem porque, mas aprovam, querem saber mais, entender, se inspirar.

Nem nós sabemos bem, estamos em constante busca. Como disse o eterno ídolo da adolescência Renato Russo: “vocês acham que eu tenho as respostas, mas eu nem sei as perguntas!” 

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Aimorés: Fazenda Bulcão


De Terra Una, em Liberdade, Sul de Minas, seguimos rumo a Aimorés, na Bacia do Rio Doce, na divisa de Minas com o Espírito Santo.

Desde o começo do ano, quando soubemos do projeto de reflorestamento da Fazenda Bulcão, herdada pelo fotógrafo Sebastião Salgado, queríamos conhecer o Instituto Terra, organização criada por ele e por sua companheira para levar a cabo o projeto.

Demoramos três dias para chegar, com pernoites em Juiz de Fora e Manhuaçu. É um grande desafio para as crianças, e pra nós, tantas horas e dias na estrada. Tentamos viajar em horários em que sabemos que vão dormir pelo menos por algum período. E sempre de dia, pois não conhecemos as estradas e não queremos correr o risco de que algo aconteça durante a noite.

Lemos, comemos, cantamos. Mas muitas vezes nada disso adianta e temos que parar por algum tempo. Ou eu acabo pegando Lolo no colo para que ela consinta em seguir mais um pouco até nosso destino daquele dia.

Lolo apreciando a paisagem

Próximo a Aimorés. Parada estratégica na estrada de terra

Chegamos no Instituto Terra na hora do almoço e fomos surpreendidos por um lindo jardim florido e construções em madeira e alvenaria amplas e de bom gosto. Parte das construções foi feita sobre o antigo curral, aproveitando as cercas originais.


Construção sobre antigo curral

Ficamos em uma casa com seis suítes, sala, ampla varanda que dava para um lago. Tudo cercado pelo incrível jardim. Já de início vimos um quati andando pelo quintal dos fundos.

Fundos da casa que nos abrigou

No jardim ao redor do nosso alojamento

Brincando perto do lago

Fomos acolhidos por pessoas simpáticas e atenciosas. O Instituto Terra tem cerca de 72 funcionários entre administrativo, pesquisa, projetos e pessoal de campo. São 709 hectares, sendo 609 reservados à Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN) e 100 à sua sede.

Em pouco mais de 15 anos já foram plantadas mais de 4 milhões de mudas na área da RPPN. O que antes era pasto, agora é mata. Ainda há partes a serem reflorestadas. 

Com o reflorestamento muitas espécies animais voltaram à região. A começar pelos quatis. Mas também cobras, aranhas, escorpiões. Vimos diversos pássaros de diferentes cores e cantos. E borboletas. E jabotis. Até um tamanduá de colete já foi visto por lá. 

Encontramos jabotis no último dia

Há um viveiro com capacidade para 700 mil mudas e planos de ampliação para 5 milhões no futuro.

Ali está o único cine teatro de Aimorés. Aliás, a fazenda é colada à cidade e recebe visitantes que passeiam em seus jardins diariamente.

Há pelo menos outros dois prédios de alojamentos coletivos e um refeitório com cozinha em que fizemos a maioria das refeições durante nossa estadia.

Aguardando o refeitório abrir as portas


Há ainda o NERE – Núcleo de Estudos em Recuperação Ecossistêmica, que abriga também entre 20 e 30 estudantes bolsistas que residem por lá durante um ano. Seu curso é 80% prático e 20% teórico. São alunos do ensino técnico, em geral vindos de Minas, Rio e Espirito Santo. Dois deles nos acompanharam na trilha institucional e depois na trilha dos quatis que fizemos com as crianças.

Trilha institucional

Trilha dos quatis

Observando uma voçoraca feita pelas águas da chuva

O Instituto Terra já recuperou mais de 1000 nascentes na região, e todas as nove nascentes de sua sede. Com o projeto Olhos D’água, têm ajudado produtores rurais a reflorestar e recuperar suas nascentes.

É tão sério o que acontece no Brasil com a água. Um país que tem cerca de 13% da água doce do planeta, mas que mata seus rios poluindo-os, retificando-os nas áreas urbanas, desmatando as matas e florestas que os mantém vivos e às suas nascentes. As chuvas e a água vêm acabando. Já sentimos isso na pele, e o crescente mercado de água engarrafada é apenas mais um sintoma.

O próprio Rio Doce, cuja orla podia ser vista da cidade de Aimorés, já não passa mais por lá. Suas antigas margens estão secas em razão de desvio e represamento. Sem falar dos efeitos do chocante acidente de Mariana sobre sua bacia.

"Orla" do Rio Doce em Aimorés

Os rios são nossa esperança de sobrevivência nesse planeta, e não há rios sem matas e florestas. Daí a importância de um projeto como esse e de que outras iniciativas nele se inspirem.

Passeamos um pouco pela cidade de Aimorés, cortada pela linha de trem. Sobre a linha, em determinado ponto, foi construída uma passarela que imediatamente atiçou a curiosidade de Miguel. Sem muita animação concordei em acompanhá-lo na travessia sobre a ferrovia e qual não foi minha surpresa ao vivenciar tamanha diversão! As crianças sabem mesmo das coisas!







Numa pequena praça, em frente à estação de trem, brincamos mais um pouco antes de ir à feira semanal da cidade que acontece às 6as feiras à tarde e segue noite a dentro. Tudo sob um calor de 35 graus à sombra.




A temperatura na Fazenda Bulcão é pelo menos 2 graus mais baixa que a da cidade de Aimorés. Que se plantem muito mais árvores! 

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Terra Una


Terra Una foi nossa primeira parada. Não foi fácil chegar, ou melhor, iniciar a viagem. Nosso plano era estar lá no domingo (2/10) mas só conseguimos pegar a estrada na 2ª. E depois do almoço, o que nos obrigou a dormir em Rezende.

No dia seguinte, já saindo de Rezende, nos demos conta de que não havíamos abastecido. Após alguma hesitação, retornamos para abastecer. Pra finalizar, atolamos uma vez e em outra tivemos a ajuda de um trator para passar por uma parte difícil da estrada. Chegamos apenas na 3ª.

Todos esses eventos, acredito, revelam o medo que havia, pelo menos em mim, desse início da viagem. Toda mudança mexe com cada qual. E eu temia uma vivência parecida com a que tivemos no início da nossa primeira viagem.

Terra Una é uma comunidade iniciada por amigos, muitos dos quais viviam no Rio de Janeiro há pouco mais de uma década. Eram jovens vivendo em casas coletivas, com muitas ideias e vontade de fazer diferente. E vem fazendo!

Encontraram essa terra enfiada no sul de Minas Gerais. As primeiras construções foram espaços coletivos de refeição e alojamento. Hoje já há pelo menos quatro casas de moradores e algumas outras em construção.


Lolo em frente ao refeitório e cozinha comunitários


Algumas casas de moradores

O casal que nos recebeu estava lá há pouco mais de um mês. São candidatos a viver na comunidade e, pelo que entendi, há um processo seletivo relativamente longo para que se adquira o direito de construir ali.

Conhecíamos um outro casal que se mudou pra lá há cerca de um ano com seus dois filhos unschoolers e que nos inspirou a ir e nos ajudou com as reservas.

Ficamos alojados na suíte, um quarto com cama de casal e beliche além de banheiro com pia e chuveiro apenas. Sim, pois os banheiros coletivos são secos, a maioria para o número 2. Somos incentivamos a fazer o número 1 ao ar livre, no mato.

Diferente do que eu imaginava, há poucas crianças vivendo ali. Atualmente são quatro, mas dão um bom caldo para brincar e se relacionar.

Na chegada estava apenas Iuri, de 6 anos, por quem Miguel imediatamente se encantou e a quem dedicou toda a sua lealdade pelo período em que estivemos lá. É tão interessante ver como se criam as relações entre crianças a partir do meu próprio filho. 

Vejo que há algumas crianças, em especial meninos, que ele elege para seguir, admirar, com quem quer estar o tempo todo. O que muitas vezes não é exatamente recíproco e lhe causa frustrações.

Mas aí está o aprendizado. Nas relações. No que sentimos. No que sentimos que o outro sente. Na forma como nossos sentimentos se encontram e se desencontram. O quanto mudamos nosso sentir e nossas atitudes a partir disso. Enfim, isso é viver, relacionar-se, aprender.

Os primeiros dias foram de muita tranquilidade e, claro, algum estranhamento interno. Uma busca interna por um lugar de estar, por entender as relações na comunidade e me colocar, me entender, entender meus sentimos em relação a mim, às novas pessoas com quem estava me relacionando e à nossa família.

Pude superar as dificuldades iniciais da viagem com rapidez. Não sem antes perder a paciência e a elegância com Miguel algumas vezes. Mas minhas mudanças de humores foram por mim rapidamente observadas, compreendidas e superadas, o que me deixou bastante animada.

Logo outros moradores chegaram e assim novas crianças: Luna, Henrique e Luíza completaram o time. Convivência, brincadeiras e conflitos foram o natural cardápio dessas novas relações para Miguel.

Lolo, por hora, é pura alegria vital, puro encantamento. Encanta-se e encanta às pessoas com seu jeito sorridente e saltitante.

Balanço pra dois no alto galho do eucalipto
Amor pelo pula-pula



Na trilha da cachoeira

Algumas das lideranças da comunidade organizam cursos chamados Gaia Education e a metade de nossa estadia por ali foi compartilhada com um grupo de pessoas que vieram para uma imersão nesse curso. E novas crianças chegaram: Maria e Maria Clara.

Foi perceptível a mudança no ambiente e nos hábitos. Se nos primeiros dias apenas algumas refeições eram compartilhadas e nos ocupamos do café da manhã e jantar de nossa família, agora, com o curso, todas as deliciosas refeições vegetarianas eram feitas em conjunto. Também pudemos nos voluntariar na cozinha e no cuidado das crianças.


Aguardando o rango


Algumes des cozinheires do dia

Se antes passamos vários momentos a sós, e pude estar exclusivamente com Miguel ou com Lolo, agora as crias estavam sempre juntas com outras e havia muitas pessoas para conhecer, conversar e trocar.

Com outras crianças visitantes

O clima esteve frio na maior parte do tempo, em especial nas noites, quando dormíamos com cobertores. A área, que antes era de pasto, está reflorestada, o que contribui para uma temperatura mais baixa. A maior parte do reflorestamento se deu por “inação”. Os moradores e proprietários simplesmente não atrapalharam a natureza. Como havia áreas com remanescentes de mata, a natureza fez o trabalho.

Há ali algumas hortas e plantações e muita interação com a comunidade do entorno que fornece alimentos orgânicos e mão de obra.

Foi um início de viagem auspicioso! E com muita alegria e gratidão (e alguns carrapatinhos adquiridos na cachoeira) nos despedimos.


Guiados por Henrique, chegamos à cachoeira

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Pé na estrada!


No primeiro semestre de 2016 empreendemos uma viagem em família por quatro meses. Viajar decorreu naturalmente dos processos que vimos vivendo desde o nascimento de Miguel, há cinco anos. A maternopaternidade foi avassaladora em nossas vidas, para o bem! 

Junto ao nascimento de Miguel também iniciamos um processo de cura. Não só físico, mas também espiritual. O tumor no cérebro do Tiago, descoberto pouco antes de Miguel fazer 2 meses, abalou nossas estruturas, evidentemente. 

Mas não nos deixamos abater e logo completaremos 5 anos da cirurgia e do início dos tratamentos. O nascimento de nossa segunda filha, Eloísa, foi uma grande celebração desse processo de cura.

Em 2013 parei de trabalhar fora pois para mim a vida segmentada não tinha mais sentido. Não fazia sentido deixar meu filho com a babá e sair pra (tentar) mudar o mundo. Me dei conta de que a grande revolução estava na relação com ele. Queria uma vida integral,orgânica e transformadora.

Também saímos de São Paulo nessa época e muitos processos de autoconhecimento e de mudanças internas e externas se iniciaram.

No início de 2016 foi a vez de Tiago parar de trabalhar. Ele, muito mais do que eu, vem protagonizando uma grande transformação pessoal. Curar-se de um câncer cujo prognóstico era amedrontador é muito mais que um grande feito. Sua força de vontade com relação à alimentação e ao autoconhecimento é inspiradora. Quanta coragem e determinação reconheço em meu companheiro.

Desde o início desse ano, pois, somos todos desinstitucionalizados. Eu e ele nos desligamos de nossos trabalhos formais no sistema. Nossos filhos nunca foram à escola. E agora, para onde ir? Qual caminho seguir?

Naturalmente veio a ideia da viagem. Como nada mais nos prendia a Barão Geraldo desde que Tiago se demitiu, saímos em busca de comunidades sob o pretexto de encontrar um lugar para construir nossa casa. O que encontramos, de fato, foi um lugar de estarmos em família.

Sim, pois desde que parei de trabalhar fora era eu quem ficava com Miguel e depois, com Eloísa. Sem falar no tempo de convalescência de Tiago, que durou mais de um ano e que não permitiu uma verdadeira entrega sua à paternidade, do que ele sempre se ressentiu.

Era chegada a hora, portanto, de “integrar” Tiago à família e essa viagem de quatro meses serviu também para isso. Mas foi um grande aprendizado para todos estar juntos 24 horas por dia, 7 dias por semana, chegando a lugares novos, estabelecendo contato com as pessoas, recriando uma rotina com as crianças, cuidando dos espaços que nos acolheram, cozinhando, lavando nossas roupas, enfim, vivendo sem grandes compromissos externos.

Como já ouvi de mais de uma pessoa, viajar acelera os processos. E pude senti-lo na pele. O início da viagem foi muito duro, mas olhando em perspectiva, foi tudo o que precisávamos, e foi bom demais. Tanto que nossa estadia, de volta à nossa casa em Barão Geraldo, foi relativamente harmônica. Ainda que muitos estranhamentos e questionamentos nos tomassem.

Por isso estávamos tão animados em recolocar o pé na estrada. E assim iniciamos uma nova viagem, dessa vez mais curta, um mês e meio. Escolhemos Minas Gerais por ser sede de alguns projetos que queríamos conhecer e vivenciar, mas também passaremos pelo Rio de Janeiro e por Cunha.

Viajar é sempre um desafio. E desafios são tudo o que nos move!

Partiu Minas Gerais!