Há uma questão que
me incomoda há anos: o fato de alguém limpar a minha casa, lavar a
minha roupa, fazer a minha comida. Venho me dando conta do quanto
desempoderada sou, do quanto me falta autonomia quando delego a outra
pessoa funções tão primordiais.
E quem são essas
pessoas que desempenham essas funções? São aquelas que, em geral,
estão na base da escala social, trabalhando arduamente por salários
baixos e vivendo, muitas vezes, das migalhas recebidas de seus
“patrões”.
Mas para além de eu
poder pagar alguém para cuidar de coisas tão pessoais, está o fato
de que nunca aprendi a cuidar de mim. Nasci numa família que podia
pagar duas empregadas domésticas, sendo que uma dormia em casa e
trabalhava inclusive aos fins de semana. Resquícios da escravidão.
Fui educada para
entrar para o mercado de trabalho, para ser bem sucedida e ganhar
dinheiro suficiente pra continuar não precisando me preocupar com os
cuidados da minha casa. Minha educação passou ao largo dessa
questão.
Não me lembro de
ver minha mãe na cozinha ou fazendo qualquer função desempenhada
por uma dona de casa. Me lembro sim de pedir até água, de ter
sempre alguém pra me servir, pra fazer tudo para e por mim.
O resultado, a meu
ver, não poderia ser mais catastrófico: chegar aos 40 anos sem
saber cozinhar, limpar uma casa, lavar minhas roupas. E sem qualquer
referência sobre como fazê-lo, pois isso nunca foi valorizado no
meu meio social.
Quando meu primeiro
filho nasceu, além de ter uma pessoa que limpava, cozinhava e lavava
por três vezes por semana, assim que voltei a trabalhar contratei
uma babá que cuidava das coisas do Miguel. Sei que essa minha
dependência é, sem dúvida, uma das causas pelas quais Miguel só
começou a comer com um ano e meio.
Quando nos mudamos
para Barão Geraldo, Miguel já tinha 1 ano e 9 meses e eu, que
também parei de trabalhar fora, estava decidida a cuidar mais da
casa. Mas eu simplesmente não sabia por onde começar. Preguiça,
comodismo, lei do mínimo esforço, recursos pra pagar uma empregada.
Além disso, eu não confiava no meu corpo para fazê-lo.
Todo esse tempo, e
já se vão mais de dois anos e meio, e essa questão tem sido um
incômodo crescente. Diariamente me dou conta da minha falta de
autonomia, dependência, preguiça, mas fica tudo na mente. O corpo
permanece inerte. Permanecia.
O fato é que em
agosto do ano passado meu marido também decidiu parar de trabalhar
no mercado formal de trabalho. Passamos seis meses nos preparando pra
isso, guardando dinheiro, revendo gastos, e dispensar a ajuda por
três vezes semanais era não só necessário, mas muito desejado.
A cada dia eu sentia
a necessidade de me empoderar da minha vida, das minhas necessidades
e das des mes filhes. E foi assim, trabalhando na cabeça, que passei
os últimos meses até que finalmente demitimos nossa ajudante, no
início do ano.
Antes disso, em
dezembro, tive uma experiência no mínimo intensa. Participei de um
ritual de ayahuasca e após lutar contra os efeitos da erva, tentando
manter a mente no controle, iniciei uma série de vivências e a
primeira foi com minha empregada doméstica. Pude sentir o quanto é
humilhante limpar, lavar, cozinhar, cuidar das coisas de outra pessoa
em troca de dinheiro. A mim parecia uma vida infernal essa de
precisar trabalhar assim para sobreviver.
Quando a via
limpando nossa casa, tudo era sombrio, escuro. Quando me via limpando
a casa, junto com minha filha (vinha a filha pois ela, ainda bebê,
estava comigo no ritual, mas esse cuidado, em nossa casa, é de
todes, homens e mulheres), tudo era claro, iluminado.
Pois eis que
finalmente chegou o grande dia, e confesso que muito pouco fiz antes
de a necessidade bater à porta. E essa nova fase veio intensa, com
uma infestação de piolhos que dura mais de um mês, tendo que
ferver e lavar roupas de cama e banho diariamente, faça chuva ou
faça sol.
Comecei a cozinhar
todos os dias e a tentar manter a casa minimamente organizada. Que
desafio! Mas possível. Meu corpo, em verdade, funciona! E com ele
posso trabalhar e dar sentido à nossa existência. Parece exagerado?
A mim não. Muitas vezes fiquei em casa com as crias sem ter o que
fazer, enquanto nossa empregada corria pra lá e pra cá pra dar
conta de uma casa onde vivem quatro pessoas, sendo duas crianças.
Eu me sentia uma
inútil e ao mesmo tempo, pasma com a força de seu corpo, sua
agilidade e eficiência. Pensava que nunca seria capaz de viver sem
empregada. Cheguei, em desespero, a dizer isso a uma amiga.
Aliás, lembro bem
quando, três meses após nossa mudança pra Barão, levei um cano
federal da pessoa que me ajudava. Eu olhava pra aquela casa toda suja
e bagunçada e me batia um desânimo, uma depressão, um desespero
mesmo. Eu não tinha ideia do que fazer e precisava desesperadamente
que alguém viesse limpar a casa pra mim. Que prisão!
Pude também
observar o que essa relação gerava no meu filho. Pude vê-lo pedir
coisas à nossa funcionária com a naturalidade com que um “patrão”
se dirige, ainda que educadamente, aos seus serviçais. Pude ouvir
comentários que me chocaram, como o dia em que perguntou a uma
amiguinha na praça: “Quem trabalha na sua casa?”, como se isso
fosse a coisa mais corriqueira e natural do mundo. E é! Mas não pra
nós.
Não quero que meu
filho acredite que está numa posição de ter alguém fazendo-lhe as
coisas mais básicas como sua cama, sua comida. Ao mesmo tempo não o
quero tão desempoderado e dependente que não saiba cuidar de si,
como me vi por mais de 40 anos.
E conto, sem
vergonha, que não tinha ideia de por onde começar, tal minha trava
para cuidar de mim e dos meus. Chamei a pessoa que trabalhou comigo
por mais de 15 anos, quando morávamos em Sampa, e com quem temos uma
relação de amizade. Passamos um dia e meio faxinado a casa juntas.
Nossa, quantas
travas, mitos, crenças, padrões, dogmas, paradigmas caíram. Eu
imaginava tudo tão difícil! A escola em mim, o certo e o errado.
Acreditava haver uma única maneira de fazer as coisas, desde definir
o uso de panos e produtos de limpeza até a ordem em que as coisas
deveriam ser feitas. Tudo isso, pra mim, era indecifrável, complexo,
obscuro.
E foi surpreendente
ver, a partir também das trocas com outras mães/mulheres/donas de
casa/amigas-irmãs, que cada ume tem seu jeito. Que não há regras,
certo, errado, mas que se vai aprendendo com o fazer. Eu precisava
sim de algumas referências, e elas vieram e têm vindo. Mas me sinto
capaz de inventar o meu jeito.
Também não
precisamos de uma casa impecável, limpa diariamente. Eis que me vi,
nesses dias, diante do que entendo ser o dilema da mulher moderna:
limpar a casa ou viver a vida? Precisamos de muito menos do que
acreditamos, e cada dia é um dia. Cada dia faz-se o que é possível
priorizando o que é essencial, como a comida.
Ao cuidar da casa,
da comida, da roupa, da vida, sinto que reduzimos também o impacto
sobre o planeta. Se não sou eu que vou limpar, lavar, cozinhar,
acabo não cuidando do quanto uso de recursos, pois alguém irá
arcar com minhas ações e aí uso mais copos, coloco a roupa pra
lavar antes de estar suja o suficiente, desperdiço comida. Quando me
empodero dos processos, quando sou eu quem vai cuidar da “sujeira”
que eu fiz, tendo a agir de forma mais comedida.
Meu corpo tem estado
cansado. De um cansaço que há muito não sentia. Um cansaço
prazeroso, de trabalho, de criação, de movimento, de realização.
Também tenho
aprendido muito. Sobre a casa, sobre a comida, sobre a vida, sobre
mim. Hoje me sinto forte, potente. Sei que posso cuidar de mim, des
filhes, da família. Tenho um companheiro parceiro de todas as horas
com quem compartilhar os desafios diários que se nos apresentam.
É tanto aprendizado
e tanta cura nesse processo que mais que tudo me sinto grata pelo
caminho percorrido e pela liberdade que conquistei. É de um outro
lugar que parto para o que virá nesse ano.