Quando Miguel nasceu
eu já sabia que queria outre filhe1.
A maternidade foi algo intenso, enorme, uma invasão de
questionamentos, sentimentos, sensações, quereres, buscas,
mudanças.
Lembro do dia em que
trouxemos Miguel pra casa depois do parto hospitalar. Uma paz, uma
sensação de completude, de alegria, de união. Eu estava tão feliz
que, na mesma hora, me veio um medo de que algo ruim pudesse
acontecer. E aconteceu.
Prestes a completar
dois meses de família descobrimos um tumor de 7,5 cm no cérebro do
Tiago, meu marido.
Foi um baque. Um
susto. Um balde de água fria. Um terremoto. Mudança brusca no
puerpério. Fragilidade, lágrimas, dor, desespero, medo,
insegurança. O que será de nós?
Eu era um mar de
lágrimas me esgueirando para carregar meu bebê. Mas algo aconteceu,
uma tomada de consciência, uma força que eu desconhecia, gotinhas
de rescue, enfim, num dado momento senti-me forte, potente, que eu
poderia sim segurar a onda, apoiar meu companheiro, criar meu filho.
E foi nessa confiança que me agarrei nos meses que se seguiram.
A operação ocorreu
um mês depois. Mais de 10 horas de cirurgia e à meia-noite me liga
o médico para dar notícias. Disse que foi um sucesso, mas que não
puderam remover tudo para evitar sequelas, não lembro se disse algo
sobre a gravidade do tumor, pois era algo que eu não queria ouvir.
Lembro sim de questioná-lo se deveríamos armazenar o sêmen do
Tiago pois queríamos ter mais filhes, eu já estava com 40 anos, não
sabia quanto duraria a químio... “Não dá pra ter mais filho”.
“Como?” Explico tudo novamente. “Não dá pra ter mais filho”.
Mas por que? Seria hereditário? “É câncer. E é incurável.”
Foi assim que recebi a sentença de morte de nossa família como a
havíamos planejado.
Foram dias duros. Um
mês de hospital. Marido irreconhecível, em seu mundo, recluso. Mas
vivo o suficiente para me pedir para dormir com ele alguns dias no
hospital pois estava enlouquecendo. Foi assim que Miguel e eu
dormimos pelo menos 6 noites ali e fizemos uma revolução. Alguns
nos ajudaram, encontraram um berço como aqueles que se vê em filmes
da 2a guerra. Outros nos reprovaram. Recebemos a visita de
pessoas do hospital questionando nossa escolha ao expor um bebê de
três meses àquele ambiente. Foram noites duras. Mas importantes.
Eu insistia que
Tiago conseguisse ejacular para armazenarmos seu sêmen, mas ele
estava em outra dimensão, em outro lugar, não tinha vontade ou
condição de fazer isso.
Na 6a
feira anterior ao início da radioterapia ele conseguiu ejacular.
Minha mãe estava prestes a entrar no cinema ao lado do hospital.
Voltou correndo, colocou o recipiente com o sêmen entre os seios
para mantê-lo aquecido conforme indicação da clínica que o
armazenaria e pra lá rumou. Sim, queríamos outre filhe e não havia
prognóstico que nos fizesse deixar de estar vivos e viver o
presente.
Quarenta dias de
radioterapia. Um ano de quimioterapia. Exames. Visitas ao oncologista
hora com boas notícias, hora não. Incertezas. Esperas. E muita
busca por informações, pessoas, vivências, autoconhecimento,
conscientização, mudança de paradigmas em várias áreas: saúde,
alimentação, estilo de vida, relações, crenças.
Findo esse ano
intenso e fundamental na nossa vida a notícia era de que estávamos,
pelo menos por hora, livres da quimioterapia. E mais um ano sem
quimio significaria que poderíamos engravidar naturalmente. Esse era
nosso plano secreto, pois sentíamos os olhares de medo e
desconfiança do entorno, de que o tumor poderia voltar a qualquer
momento, de que eu já tinha mais de 40 anos.
A medicina ocidental
pode ser cruel. Parcial. Arbitrária. Se muitas vezes salva, muitas
mais devasta. Se alguns deram um ano e meio de vida pro Tiago, um tio
médico, ao telefone e com a naturalidade de quem comenta o clima
afirmou que o tumor voltaria em 2 ou 3 anos. Já a minha
ginecologista de anos alegou categoricamente que a chance de
engravidar, na minha idade, era de 1%.
Mas somos
incrédulos, persistentes, vivos, curiosos, abertos. E foram esses
anos de cura através de muitas buscas e encontros que nos levaram
até o momento em que engravidamos naturalmente após 6 meses de
tentativas e muito querer.
Foi uma gravidez
difícil, pela minha insistente anemia, pela idade, por já ter um
filho pra cuidar, pelos hormônios de gerar uma filha. Mas foi uma
gravidez de conexão e consciência.
Eu estava tudo menos
preparada para o parto do Miguel, induzido às 42 semanas, com
anestesia, hospital e direito a filho desmaiado ao nascer. E nesses
anos também pude trabalhar esse parto, entender a minha
responsabilidade por ele, pelas escolhas que fiz, pelo quanto o
entreguei à medicina, às instituições, ao outro sem me apropriar
dele, do meu corpo, da minha capacidade de parir.
Por tudo isso essa
gravidez, esse parto e essa filha foram muito queridos, muito
esperados e intensamente vividos.
Eu já estava com 40
semanas e 5 dias. A obstetra que me acompanhou no final já indicava
indução natural (descolamento de membrana) para a semana seguinte,
um filme que eu já tinha visto (ou vivido).
Era 6a
feira, dois dias depois do meu aniversário de 44 anos. Estávamos na
praça do coco no fim da tarde eu, Miguel e Tiago. Eram 7h da noite e
nos preparávamos para ir embora. Vi a primeira estrela no céu e
pedi para o parto vir logo. Comecei a caminhar e a bolsa rompeu.
O trabalho de parto
pode começar em até 72 horas após a bolsa ter se rompido. Eu porém
já sabia que logo começaria. Liguei para minha amiga e vizinha que
se ofereceu para receber o Miguel. Chegamos em casa, demos banho e
janta e Tiago o levou para lá.
Às 8h da noite
começaram as contrações. A equipe se formou rapidamente: doula,
parteira, neonatologista. Gente querida. Mulheres amigas na
intimidade do nosso lar. Fui para o chuveiro e de lá não mais saí.
Lá colocaram a
banheira inflável. Eu sentia completamente cada contração. Sabia
onde minha bebê estava. Fizemos um curso de hypnobirthing. Tiago
gravou um dos relaxamentos que ouvi durante as últimas semanas de
gravidez. Eu só queria ouvir aquilo. Me centrava, me orientava, me
conectava. Fiz várias das visualizações indicadas e o colo
rapidamente foi se abrindo. Tive algumas contrações mais fortes,
umas seis, em que senti vontade de vomitar. Mas elas vinham bem
espaçadas entre outras mais brandas. Quanta sabedoria nesse corpo.
Eu sabia quando a contração estava pra chegar. Me sentia em total
conexão com meu corpo e com o trabalho de parto.
A cada dia me dou
conta da potência desse parto, do quanto ele foi e é importante na
nossa vida. E como nossa família se fortaleceu e uniu após esse
nascimento.
Novos desafios se
nos colocam a cada dia. E isso é viver. Mas seguimos fortalecidos e
crentes em nossa capacidade, autorresponsabilidade e amor.
1Em
contato com os textos da amiga querida Letícia Penteado, do blog
Anarca é a mãe, tornou-se impossível não estar atenta ao
machismo da língua portuguesa. Difícil escrever sem usar a
linguagem neutra de gênero.